E finalmente choveu em Salvador. Depois de um longo
período sem uma gota d’água, o calor vinha aumentando, mas naquela noite estava
insuportável. Depois de deitar na cama, ainda demorei a dormir e só o fiz após
levantar e tomar outro banho. Ainda assim, o calor incomodava bastante. Não sei
ao certo quanto tempo levou depois que peguei no sono, mas sei que em pouco
tempo, algo me despertou: um barulho muito alto, um estrondo.
Aquele foi só o primeiro dos inúmeros trovões que
viriam acompanhando a chuva naquela noite. Não era a primeira madrugada
turbulenta que eu havia assistido, mas foi uma das mais marcantes. O barulho só
aumentava e nada da chuva cessar. Como se não bastassem os trovões, os
relâmpagos iluminavam todo o meu quarto, espantando o meu sono. O espetáculo
demorou a acabar e, enquanto ele se firmava no céu, pensamentos tomavam conta
da minha noite.
Comecei a pensar na multidão de pessoas que
trabalham nas madrugadas. Motoristas, cobradores, seguranças, policiais,
taxistas… enfim. Pessoas com uma família em casa, aguardando pela sua volta. Ou
mesmo as que não estavam trabalhando. Ou mesmo as que não têm uma família
esperando em casa. Ou mesmo as que não têm família. Ou mesmo as que não têm
casa. Eu reclamando por ter perdido o sono, enquanto há gente querendo,
simplesmente, um cobertor. Já imaginou o que é viver sem um teto? Coloque-se
nessa situação, só por um minuto. Imagine a si mesmo na madrugada chuvosa e com
relâmpagos sobre a sua cabeça. Imagine sua cabeça sendo seu teto. Imagine não
poder perder o chão.
É fácil reclamar de barriga cheia quando se pode
encher a barriga todos os dias. Mas não vim aqui dar lição de moral, até porque
nem tenho tanta moral para fazê-lo. Mas vim tentar te fazer perceber o quanto é
incrível ter abrigo, alimento e companhia.
O quanto é incrível ter conhecimento e sabedoria. Poder ter sonhos e ainda se encantar com
algo. Na manhã que se seguiu àquela noite, o temporal tomou conta dos
noticiários. Ruas foram alagadas, imóveis invadidos pela água, os hospitais
atendiam emergências de vítimas de deslizamento de terra e árvores vieram
abaixo. A população fez registros de imagens e o acontecimento deu o que falar
nas redes sociais.
Hoje tive que comprar umas coisas e estava zanzando
pelo meu bairro. Havia chovido e fazia frio, e eu usava roupa quente. Passei na
frente de um antigo ponto de ônibus e vi uma moça sentada no chão, encostada na
parede e se encolhendo contra ela, abraçando os joelhos. Ela usava um vestido
de alças finas, o qual esticava pela barra a fim de cobrir ao máximo suas
pernas. Estava morrendo de frio. Provavelmente sua noite não seria diferente.
Como teria sido sua madrugada dias antes, naquele show interminável? Ninguém
questiona. É que quando as pessoas entram em suas casas, fecham as portas, as
janelas e os olhos. Aquela moça no com frio foi só um dentre milhões de
exemplos de que o mundo gira, mas continua parado.
Cinco dias depois e nada mudou: as pessoas esqueceram,
os jornais têm outros assuntos e tudo continua como antes. Os danos não foram
reparados e ninguém liga para isso. Estão na frente do computador, trancados
com a hipocrisia. Mas o que venho dizer, caro amigo, é que nunca fui tão grata
por tudo que tenho. É uma dádiva ter um lar, saúde e amor. E é um dom ainda
poder se encantar com grandes e pequenas coisas quando o mundo vem perdendo
todo o seu encanto.