A SOCIEDADE, MEU CABELO E EU

By Clara Elisabeth - 11:39

“Sociedade, tenha piedade de mim, espero que você não fique furiosa se eu discordar”. 
                              (Jerry Hannan, em "Society")                     




O Brasil, assim como os demais países capitalistas, tem uma sociedade que tece regras e se submete às mesmas. Evidentemente, toda regra tem sua exceção e há diversas pessoas que tentam aos poucos fugir a tais regras, mas são condenadas e julgadas a todo o tempo.
Claro que a superestrutura social a que estamos submetidos possui diversos meios de exercer influência ideológica (de forma explícita ou nem tanto) aos indivíduos. Os padrões sociais de beleza são um exemplo desse controle: as pessoas são classificadas e julgadas de acordo com sua aparência física, pelas roupas que vestem e pelo cabelo que portam. 
Hoje, em pleno século XXI, ainda não é de muito bom tom uma mulher andar por aí com cabelos curtos ou um homem com cabelos compridos. Além do mais, cabelo muito volumoso, “armado”, “duro”, é coisa que pode ser mudada: por que andar com “um cabelo desses”, se é possível alisar?
Há algumas semanas, fiz o Big Chop. Para quem não sabe, esse é um processo pelo qual a pessoa que tem cabelos alisados (e que, na maioria das vezes, já deixou de alisar há algum tempo), retira a porção capilar que contém a química de alisamento, ficando apenas com a parte natural (o grande corte). A decisão de cortar meus cabelos já estava bastante amadurecida em minha mente, inclusive, já vinha pensando nisso há alguns anos, mas era uma ideia que surgia e logo ia embora. E eu voltava a alisar. No ano passado, não sei exatamente porquê, tal ideia voltou à minha mente com muita força, e comecei a pesquisar sobre o assunto. Foi então que vi que não era a única querendo voltar às minhas origens.
Por falar em minhas origens, meu cabelo é crespo, daqueles que se estiver solto, é visto antes de mim (rs). Meus pais, assim como maior parte da família, também têm cabelo crespo. Desde pequena, eu sempre via minhas colegas da escola com os cabelos (lisos a ondulados) soltos e facilmente penteados, sempre lindos e brilhantes, e eu sempre os considerava melhores que o meu, mas isso só foi me incomodar de verdade, depois de um certo tempo. Mais ou menos na primeira ou segunda série, percebi que eu era a única que ainda usava uns penteados infantis, cheio de enfeites vermelhos no cabelo (para combinar com a farda) e que não penteava os cabelos sozinha. 

"Meu cabelo é ruim, se eu tivesse cabelo liso, tudo seria diferente, eu seria mais bonita e teria mais amigas, ninguém iria rir de mim e que seria mais feliz. É tudo culpa do meu cabelo."


Era assim que eu pensava. Minha mãe, quando eu tinha entre nove e dez anos, se não me engano, me deixou alisar os cabelos. Fiquei feliz, balançando a cabeça feito boba na frente do espelho. Ele estava solto e não estava armado, parecia milagre! Depois de uns dias, ele ficou ressecado e sem forma. mesmo molhado, com creme e penteado, não formava cachos, uma ondinha sequer… Fiquei desapontada, mas me disseram que com o tempo e com muita hidratação, meu cabelo ficaria lindo, que tinha ainda que “se acostumar” com a química, ainda precisava de tempo… Ao longo dos anos, meu cabelo passou por várias fases, fui aprendendo a lidar com ele e conhecendo as dificuldades que enfrentam as pessoas com cabelos quimicamente tratados.
Sempre fui uma pessoa que transpira bastante e, quando eu dava escova nas madeixas, rapinho passava o efeito, e eu tive que me acostumar com isso. O processo de alisamento também demorava um bom tempo (contando o tempo que eu tinha que esperar no salão - que estava sempre cheio aos sábados). Era um suplício, eu sempre detestei salão de beleza (mesmo pra fazer as unhas e essas coisas, detesto ficar lá, esperando ou fazendo as coisas ao som da TV ligada na Globo e da conversas das outras clientes, mas enfim). 
Minha dor na consciência veio pouquíssimos dias depois do primeiro alisamento, quando percebi que nunca mais teria meus cachinhos de volta e ainda teria que passar aquele negócio no cabelo a cada três meses.
O tempo passou e cá estou eu, de cabelos curtos (joãozinho), pós BC, e me descobrindo. Não foi uma decisão repentina e nem pressão de amiga nenhuma. Muito pelo contrário. Não tive muito apoio para isso, apenas de umas três amigas com as quais comentei e que estavam pensando também sobre o assunto. Depois de quatro meses de transição, meu cabelo estava muito quebradiço e minha mãe me propôs o corte (mesmo tentando me convencer a relaxar depois, com outra química, seria um ‘bigudinho’, na verdade). Fiquei feliz por ela ter apoiado e pus um fim nessa história. Tirando poucos casos, muitas pessoas comentaram positivamente e me apoiaram nessa mudança, para a minha surpresa. Pelo menos até hoje (20 dias depois) ainda não passei por nenhuma fase de autonegação ou coisa parecida, continuo me adorando no espelho (risos). 
Mas o que quero falar é dos comentários. Primeiro:
“POR QUE VOCÊ FEZ ISSO, MENINA?”
-Por que eu quis.
“MENINA, VOCÊ CORTOU O CABELO! FICOU ATÉ LEGAL… TÁ NA MODA AGORA NÉ?”
-Não sei se está na moda, não cortei por causa disso. Cortei porque entendi que não sou obrigada a seguir certo caminho porque as pessoas querem e acham bonito. Depois que me aceitei do jeito que sou, crespa, afrodescendente, negra de pele clara, não busco mais desesperadamente a aceitação das pessoas (em vários aspectos, aliás). Cortei por uma busca à minha própria identidade. Cortei porque, sim, eu acho lindo o cabelo crespo e cheio. Sim, eu acho o cabelo liso, sem ondas, sem nada, normal e comum (culpa de quem impôs que era bonito e todo mundo deveria alisar também, aí já viu).
“VOCÊ NÃO FICOU COM MEDO NÃO?”
-Não. Como eu disse, a ideia estava amadurecida em minha mente, eu havia pesquisado muito sobre o assunto e estava decidida. No salão estava tocando Aerosmith, Pearl Jam e Queen, eu não poderia estar mais à vontade. 
“MAS VOCÊ AGORA VAI TER QUE USAR MAQUIAGEM, ARGOLA GRANDONA, ESSAS COISAS, NÉ?’
-"Ter que”, não. Não sou obrigada, não é uma necessidade. Sempre ando assim, de cara lavada, mesmo depois do BC. De vez em quando passo delineador, e quando dá na telha, passo maquiagem. Quando eu estou a fim. Isso independe da quantidade de cabelo que eu tenha. Não vou libertar meu cabelo e esconder meu rosto por trás da maquiagem. O mesmo vale para acessórios. 
Além dos comentários que ouvi diretamente, têm os clichês que as pessoas insistem em sustentar. Por favor, a quantidade de cabelo que a pessoa tem NÃO indica a orientação sexual dela. E a textura do cabelo que uma pessoa exibe NÃO é motivo ou justificativa para qualquer julgamento preconceituoso ou para qualquer ato discriminatório. 


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(meu antes e depois)



(Meu cabelo atualmente)





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¹Esse texto foi originalmente escrito em abril de 2014, editado e atualizado em dezembro de 2015.

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