“Sociedade, tenha piedade de mim, espero que você não fique furiosa se eu discordar”.
(Jerry Hannan, em "Society")
O Brasil, assim como os demais países
capitalistas, tem uma sociedade que tece regras e se submete às mesmas.
Evidentemente, toda regra tem sua exceção e há diversas pessoas que tentam aos
poucos fugir a tais regras, mas são condenadas e julgadas a todo o tempo.
Claro que a superestrutura social a
que estamos submetidos possui diversos meios de exercer influência ideológica
(de forma explícita ou nem tanto) aos indivíduos. Os padrões sociais de beleza
são um exemplo desse controle: as pessoas são classificadas e julgadas de
acordo com sua aparência física, pelas roupas que vestem e pelo cabelo que
portam.
Hoje, em pleno século XXI, ainda não
é de muito bom tom uma mulher andar por aí com cabelos curtos ou um homem com
cabelos compridos. Além do mais, cabelo muito volumoso, “armado”, “duro”, é
coisa que pode ser mudada: por que andar com “um cabelo desses”, se é possível
alisar?
Há algumas semanas, fiz o Big Chop.
Para quem não sabe, esse é um processo pelo qual a pessoa que tem cabelos
alisados (e que, na maioria das vezes, já deixou de alisar há algum tempo),
retira a porção capilar que contém a química de alisamento, ficando apenas com
a parte natural (o grande corte). A decisão de cortar meus cabelos já estava
bastante amadurecida em minha mente, inclusive, já vinha pensando nisso há
alguns anos, mas era uma ideia que surgia e logo ia embora. E eu voltava a
alisar. No ano passado, não sei exatamente porquê, tal ideia voltou à minha
mente com muita força, e comecei a pesquisar sobre o assunto. Foi então que vi
que não era a única querendo voltar às minhas origens.
Por falar em minhas origens, meu
cabelo é crespo, daqueles que se estiver solto, é visto antes de mim (rs). Meus
pais, assim como maior parte da família, também têm cabelo crespo. Desde
pequena, eu sempre via minhas colegas da escola com os cabelos (lisos a
ondulados) soltos e facilmente penteados, sempre lindos e brilhantes, e eu
sempre os considerava melhores que o meu, mas isso só foi me incomodar de
verdade, depois de um certo tempo. Mais ou menos na primeira ou segunda série,
percebi que eu era a única que ainda usava uns penteados infantis, cheio de
enfeites vermelhos no cabelo (para combinar com a farda) e que não penteava os
cabelos sozinha.
"Meu cabelo é ruim, se eu tivesse cabelo liso, tudo seria diferente, eu
seria mais bonita e teria mais amigas, ninguém iria rir de mim e que seria mais
feliz. É tudo culpa do meu cabelo."
Era assim que eu pensava. Minha mãe,
quando eu tinha entre nove e dez anos, se não me engano, me deixou alisar os
cabelos. Fiquei feliz, balançando a cabeça feito boba na frente do espelho. Ele
estava solto e não estava armado, parecia milagre! Depois de uns dias, ele
ficou ressecado e sem forma. mesmo molhado, com creme e penteado, não formava
cachos, uma ondinha sequer… Fiquei desapontada, mas me disseram que com o tempo
e com muita hidratação, meu cabelo ficaria lindo, que tinha ainda que “se
acostumar” com a química, ainda precisava de tempo… Ao longo dos anos, meu
cabelo passou por várias fases, fui aprendendo a lidar com ele e conhecendo as
dificuldades que enfrentam as pessoas com cabelos quimicamente tratados.
Sempre fui uma pessoa que transpira
bastante e, quando eu dava escova nas madeixas, rapinho passava o efeito, e eu
tive que me acostumar com isso. O processo de alisamento também demorava um bom
tempo (contando o tempo que eu tinha que esperar no salão - que estava sempre
cheio aos sábados). Era um suplício, eu sempre detestei salão de beleza (mesmo
pra fazer as unhas e essas coisas, detesto ficar lá, esperando ou fazendo as
coisas ao som da TV ligada na Globo e da conversas das outras clientes, mas
enfim).
Minha dor na consciência veio
pouquíssimos dias depois do primeiro alisamento, quando percebi que nunca mais
teria meus cachinhos de volta e ainda teria que passar aquele negócio no cabelo
a cada três meses.
O tempo passou e cá estou eu, de
cabelos curtos (joãozinho), pós BC, e me descobrindo. Não foi uma decisão
repentina e nem pressão de amiga nenhuma. Muito pelo contrário. Não tive muito
apoio para isso, apenas de umas três amigas com as quais comentei e que estavam
pensando também sobre o assunto. Depois de quatro meses de transição, meu
cabelo estava muito quebradiço e minha mãe me propôs o corte (mesmo tentando me
convencer a relaxar depois, com outra química, seria um ‘bigudinho’, na
verdade). Fiquei feliz por ela ter apoiado e pus um fim nessa história. Tirando
poucos casos, muitas pessoas comentaram positivamente e me apoiaram nessa
mudança, para a minha surpresa. Pelo menos até hoje (20 dias depois) ainda não
passei por nenhuma fase de autonegação ou coisa parecida, continuo me adorando
no espelho (risos).
Mas o que quero falar é dos
comentários. Primeiro:
“POR QUE VOCÊ FEZ ISSO, MENINA?”
-Por que eu quis.
“MENINA, VOCÊ CORTOU O CABELO! FICOU
ATÉ LEGAL… TÁ NA MODA AGORA NÉ?”
-Não sei se está na moda, não cortei
por causa disso. Cortei porque entendi que não sou obrigada a seguir certo
caminho porque as pessoas querem e acham bonito. Depois que me aceitei do jeito
que sou, crespa, afrodescendente, negra de pele clara, não busco mais
desesperadamente a aceitação das pessoas (em vários aspectos, aliás). Cortei
por uma busca à minha própria identidade. Cortei porque, sim, eu acho lindo o
cabelo crespo e cheio. Sim, eu acho o cabelo liso, sem ondas, sem nada, normal
e comum (culpa de quem impôs que era bonito e todo mundo deveria alisar também,
aí já viu).
“VOCÊ NÃO FICOU COM MEDO NÃO?”
-Não. Como eu disse, a ideia estava
amadurecida em minha mente, eu havia pesquisado muito sobre o assunto e estava
decidida. No salão estava tocando Aerosmith, Pearl Jam e Queen, eu não poderia
estar mais à vontade.
“MAS VOCÊ AGORA VAI TER QUE USAR
MAQUIAGEM, ARGOLA GRANDONA, ESSAS COISAS, NÉ?’
-"Ter que”, não. Não sou
obrigada, não é uma necessidade. Sempre ando assim, de cara lavada, mesmo
depois do BC. De vez em quando passo delineador, e quando dá na telha, passo
maquiagem. Quando eu estou a fim. Isso independe da quantidade de cabelo que eu
tenha. Não vou libertar meu cabelo e esconder meu rosto por trás da maquiagem.
O mesmo vale para acessórios.
Além dos comentários que ouvi
diretamente, têm os clichês que as pessoas insistem em sustentar. Por favor, a
quantidade de cabelo que a pessoa tem NÃO indica a orientação sexual dela. E a
textura do cabelo que uma pessoa exibe NÃO é motivo ou justificativa para
qualquer julgamento preconceituoso ou para qualquer ato discriminatório.
(meu antes e depois)
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¹Esse texto foi originalmente escrito em abril de 2014, editado e atualizado em dezembro de 2015.
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