O MITO DA 'ACEITAÇÃO' DO NEGRO NO BRASIL

By Clara Elisabeth - 19:56


Desde que me entendo por gente, convivo com padrões de beleza convencionados socialmente e tradicionalmente legitimados. Ora um modelo europeu, com traços longilíneos, olhos claros, cabelos lisos, traços finos etc. Ora outro modelo mais próximo dos brasileiros, mais recentemente aceito, com curvas mais acentuadas, mas ainda assim, com pele perfeita e músculos definidos, cabelos pouco mais volumosos, mas ainda assim, “maleáveis”.

É indispensável ressaltar que, independente de qual modelo se esteja tratando, este ou aquele nunca será real expressão da realidade, justamente por serem modelos ideias, padrões que não ocorrem espontaneamente simplesmente por que as pessoas não são iguais.

E não precisam ser.

De poucos anos pra cá, coisa recente, a internet foi bombardeada de pessoas incentivando o uso do cabelo natural, e foram tornando-se cada vez mais frequentes termos como “transição” e “big chop”. Após um tempo de resistência, a mídia televisiva e até a indústria da moda acabaram acatando essa “tendência” e, claro, usando aos seus interesses.

Nas redes sociais, canais no YouTube, blogs e sites, surgiram diversos espaços para o incentivo e dicas para o cabelo natural. Infelizmente, esse movimento ainda não foi o suficiente para reduzir significativamente a discriminação em relação à beleza negra no Brasil. Não é difícil encontrar pessoas que deixam de alisar o cabelo, mas passam a usar outros produtos químicos que também modificam a estrutura dos fios a fim de “soltar os cachos” (frase muito dita em diversos salões que dizem trabalhar com a beleza negra); Outras fazem o big chop (corte que tira toda a parte alisada do cabelo) mas temem como o cabelo ficará ao crescer ou se arrependem depois do corte, não assumindo efetivamente o cabelo natural.

Observando e acompanhando esse movimento (há 3 anos deixei de alisar o cabelo), pude chegar a conclusão de que o problema está na base disso tudo: geralmente, para dar certo, tem que vir de dentro para fora, mas, na maioria das vezes, o que ocorre é o contrário. Isso, claro, influencia no modo como cada indivíduo vê a si e ao seu cabelo. Por exemplo, indivíduos de cabelo cacheado, até os tipos 3, tendem a ter menos problemas para assumir o cabelo natural e podem fazê-lo tanto por estética quanto por convicção, pois é um cabelo amplamente aceito. O difícil é quando esse processo é com pessoas de cabelos crespos, quando o assunto de torna mais delicado.



Fotografia: Clara Elisabeth


Meu cabelo é de um dos tipos 4, dos cabelos mais crespos e volumosos, que retêm mais a hidratação e tendem bastante ao frizz. Precisa de bastante cuidado? Sim. Menos bonito que os outros? Não. Mas nem todo mundo pensa assim. Pessoas próximas de mim já passaram pela transição, cortaram o cabelo, mas não assumiram o crespo. Inicialmente foi toda aquela alegria, sensação de libertação e tudo mais, mas depois… depois veio o arrependimento, a decepção e a vontade de ter o cabelo comprido e balançando novamente. Comigo, o assunto é das outras pessoas.

“Mas você vai deixar o cabelo assim mesmo?” “Olha o cabelo de fulana, por que você não deixa igual ao dela?” “Oi, nunca mais te vi! Seu cabelo está bonito, mas se você for lá no salão, tenho um produto ótimo que vai deixar seus cachos mais soltos!”

É difícil para as pessoas entenderem que eu simplesmente acho bonito meu cabelo assim. CRESPO. E bom, sim. Tenho cabelos naturais há pouco tempo, mas isso só tem a ver com a parte que materializei minhas convicções. A parte em que tomei coragem de dizer ‘não’ até às pessoas mais próximas e não ligar para outras opiniões. Mas as ideias já vinham amadurecendo ali há bastante tempo, só faltou um grito de coragem. Faltava. E agora sou um estandarte levantando essa bandeira com orgulho. Não, não foi fácil. Ainda não é. E não será tão cedo.

Posso chegar a conclusão de que o que é tendência é o cabelo cacheado bem volumoso, não o cabelo natural em si. Essa 'vibe naturalista’ é ótima para quem se encaixa em alguns padrões. Para outros… Bem, eles não ligam pra gente.

O cabelo crespo ainda não é visto como bonito, elegante, limpo, fashion, sensual. Fica ali no “exótico” ou “de atitude”.

É possível perceber quando as pessoas querem parar de alisar o cabelo por impulso e por influência dessas mídias quando elas querem que se aproximem ao máximo de determinado tipo. “Será que vão formar cachos?” -algumas amigas minhas perguntavam. Não, isso não é sobre ter o cabelo natural. Além de tudo que já citei, ainda há aqueles eufemismos infames que, acredite ou não, só pioram a situação (esses eufemismos me  matam!): “O cabelo dela(e) é 'meio ruinzinho’, mas pelo menos tem um rosto bonito”/ "é negra(o), mas tem traços finos" ou mesmo quando o assunto não é cabelo, como “é gordinha(o), mas é bonita(o) de rosto”/ “nem é tão negro(a) assim”. Reforçando: só piora. Só para deixar mais claro, estou falando aqui sobre olhares tortos, discriminação, desrespeito. Estou falando aqui sobre RACISMO. E estou pegando leve.



Esse não é um texto sobre cabelos.



Muitas vezes vejo discussões em diversos meios sobre a aceitação da beleza negra. Vejo que isso vem se tornando, de algumas partes, uma imposição também. Mas isso não leva a lugar algum. Não é uma simples argumentação e pronto. É questão de identidade. E ninguém constrói sua identidade de uma hora para outra. Imagine então, para desconstruir e assumir uma nova imagem. (Só para refletir: Muitas dessas pessoas que querem impor o cabelo natural são as mesmas que te ensinam sem hesitação truques para afinar o nariz com maquiagem. Só um detalhe.)

Machuca ter que dizer que a dificuldade não é deixar de alisar o cabelo e pronto. A dificuldade, ainda hoje, ainda no Brasil, é assumir o cabelo crespo. A dificuldade é se assumir como negro e entender que é uma questão muito além da cor da pele.

  • Share:

You Might Also Like

0 comentários