|Até quem me vê lendo jornal na fila do pão sabe que eu te encontrei... |
Hoje o dia amanheceu nublado e o fantasma da procrastinação
tomou conta dos meus afazeres. Fui à padaria e voltei pra cama, onde fiquei até
mais tarde, e o silêncio do meu lar me fez pensar em diversos momentos
aleatórios da minha vida. Em meio a essa confusão cronológica, lembrei-me de
você, aliás, de nós dois… Em poucos segundos, estava perdida em cada minuto de
nossa história.
Naquela época, eu costumava pegar o mesmo ônibus, no mesmo
horário, seis vezes por semana para chegar ao trabalho, o que levava bastante
tempo e por isso, sempre levava um livro comigo. Comecei a perceber que você
fazia o mesmo, religiosamente, e sempre sentava no mesmo lugar do ônibus,
naquele assento isolado perto da janela.
Você sempre lia crônicas. Eu sempre me perguntava quem era
aquele rapaz que gostava no mesmo gênero textual que eu. Certo dia, entrei no
ônibus e me acomodei. Reparei que você não estava lá. Dois pontos depois, você
entrou e se sentou. Ao meu lado.
- Já é muito tarde? -Perguntou-me.
- Não, o ônibus passou no mesmo horário, só que você entrou
alguns pontos depois. Está tudo bem? - Respondi, estranhando.
- Eu acho que sim. Eu estou de folga hoje. Acordei
atrasado, tive que pegar outro ônibus se quisesse alcançar esse. Espero que não
seja tarde. - Você disse.
- Mas você não está de folga? Bom, de qualquer jeito, você
pegou o ônibus do mesmo horário, então…
-O que quero saber é se já é muito tarde pra fazer parte da
sua vida.
Aquilo me faz ficar escarlate. Assim como outras coisas que
você me disse ao longo desse tempo. Não lembro se consegui te responder algo,
mas sei que depois desse dia, ainda líamos (e escrevíamos) muitas crônicas
juntos. Durante muito tempo, não consigo me lembrar dos meus dias sem você.
Nunca fui de lembrar datas e afins, mas lembro de cada sentimento que tomava
conta de mim quando via o brilho dos teus olhos.
Nunca imaginei que aquele homem de feições fortes
escondesse uma delicadeza timidamente encantadora. E na mesma naturalidade com
que começou, nossa história foi findando aos poucos. Sem brigas, mas também sem
tempo, fomos nos afastando um do outro. Eu era jornalista e você, arqueólogo.
Éramos progressivamente separados pela inconstância de nossas profissões.
Hoje, depois de oito anos e de muitas águas que renovaram
meus caminhos, voltei a morar no Brasil. Voltei para o mesmo bairro pequeno e
de vizinhança pacata. Continuei escrevendo para alguns jornais e tenho uma
coluna numa revista, mas agora só viajo quando quero. Consegui perceber que não
preciso ir muito longe para escrever e encontrar coisas novas. Entendi que
posso escrever coisas novas, mesmo sobre um passado já conhecido. E acho que a
vida concorda comigo nesse quesito.
Hoje fui comprar pão e, olha só quem encontrei. As
lembranças vieram como uma avalanche e meu dia foi preenchido por uma nostalgia
irritante. Cansada de percorrer o passado, comecei a arrumar a casa com alto e
bom som. Pela tarde, como de costume, fui correr.
A chuva que caiu pelo caminho espantou as outras pessoas e ficamos a sós, a estrada, a água e eu. Correr sob a chuva me fez pensar no que vi pela manhã. Mas não pense que refleti no passado novamente. Pensei no presente e no futuro. Não nesse futuro utópico que as pessoas sempre citam, mas naquele que já começa amanhã. Lembrei do quanto você está diferente por fora e pensei no que poderia ter mudado por dentro. Não sei a quantas anda a sua vida, mas também não tive coragem de te chamar para um café. Onde será que você mora? Tudo que sei é que seu número e seu endereço mudaram. A sua barba e o seu cabelo também. Mas seu sorriso continua o mesmo, assim como o brilho nos seus olhos.
Depois de você já namorei algumas vezes, mas nada deu muito
certo. Conheci outros lugares, outras pessoas e culturas, e a bagagem que
herdei da vida é singular e valiosa. Apesar de tudo isso, eu que, fora do
conteúdo profissional, escrevia leves, críticas e divertidas crônicas, hoje
leio poesias e escrevo contos sem tanto humor.
Dizem que o tempo cura tudo. De quanto tempo preciso para
me curar de você?
P.s: Ou te perguntar se ainda é tarde…
0 comentários