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By Clara Elisabeth - 20:09


|Até quem me vê lendo jornal na fila do pão sabe que eu te encontrei... |

Hoje o dia amanheceu nublado e o fantasma da procrastinação tomou conta dos meus afazeres. Fui à padaria e voltei pra cama, onde fiquei até mais tarde, e o silêncio do meu lar me fez pensar em diversos momentos aleatórios da minha vida. Em meio a essa confusão cronológica, lembrei-me de você, aliás, de nós dois… Em poucos segundos, estava perdida em cada minuto de nossa história.

Naquela época, eu costumava pegar o mesmo ônibus, no mesmo horário, seis vezes por semana para chegar ao trabalho, o que levava bastante tempo e por isso, sempre levava um livro comigo. Comecei a perceber que você fazia o mesmo, religiosamente, e sempre sentava no mesmo lugar do ônibus, naquele assento isolado perto da janela.

Você sempre lia crônicas. Eu sempre me perguntava quem era aquele rapaz que gostava no mesmo gênero textual que eu. Certo dia, entrei no ônibus e me acomodei. Reparei que você não estava lá. Dois pontos depois, você entrou e se sentou. Ao meu lado.


- Já é muito tarde? -Perguntou-me.
- Não, o ônibus passou no mesmo horário, só que você entrou alguns pontos depois. Está tudo bem? - Respondi, estranhando.
- Eu acho que sim. Eu estou de folga hoje. Acordei atrasado, tive que pegar outro ônibus se quisesse alcançar esse. Espero que não seja tarde. - Você disse.
- Mas você não está de folga? Bom, de qualquer jeito, você pegou o ônibus do mesmo horário, então…
-O que quero saber é se já é muito tarde pra fazer parte da sua vida.


Aquilo me faz ficar escarlate. Assim como outras coisas que você me disse ao longo desse tempo. Não lembro se consegui te responder algo, mas sei que depois desse dia, ainda líamos (e escrevíamos) muitas crônicas juntos. Durante muito tempo, não consigo me lembrar dos meus dias sem você. Nunca fui de lembrar datas e afins, mas lembro de cada sentimento que tomava conta de mim quando via o brilho dos teus olhos. 

Nunca imaginei que aquele homem de feições fortes escondesse uma delicadeza timidamente encantadora. E na mesma naturalidade com que começou, nossa história foi findando aos poucos. Sem brigas, mas também sem tempo, fomos nos afastando um do outro. Eu era jornalista e você, arqueólogo. Éramos progressivamente separados pela inconstância de nossas profissões. 

Hoje, depois de oito anos e de muitas águas que renovaram meus caminhos, voltei a morar no Brasil. Voltei para o mesmo bairro pequeno e de vizinhança pacata. Continuei escrevendo para alguns jornais e tenho uma coluna numa revista, mas agora só viajo quando quero. Consegui perceber que não preciso ir muito longe para escrever e encontrar coisas novas. Entendi que posso escrever coisas novas, mesmo sobre um passado já conhecido. E acho que a vida concorda comigo nesse quesito. 
Hoje fui comprar pão e, olha só quem encontrei. As lembranças vieram como uma avalanche e meu dia foi preenchido por uma nostalgia irritante. Cansada de percorrer o passado, comecei a arrumar a casa com alto e bom som. Pela tarde, como de costume, fui correr. 

A chuva que caiu pelo caminho espantou as outras pessoas e ficamos a sós, a estrada, a água e eu. Correr sob a chuva me fez pensar no que vi pela manhã. Mas não pense que refleti no passado novamente. Pensei no presente e no futuro. Não nesse futuro utópico que as pessoas sempre citam, mas naquele que já começa amanhã. Lembrei do quanto você está diferente por fora e pensei no que poderia ter mudado por dentro. Não sei a quantas anda a sua vida, mas também não tive coragem de te chamar para um café. Onde será que você mora? Tudo que sei é que seu número e seu endereço mudaram. A sua barba e o seu cabelo também. Mas seu sorriso continua o mesmo, assim como o brilho nos seus olhos.

Depois de você já namorei algumas vezes, mas nada deu muito certo. Conheci outros lugares, outras pessoas e culturas, e a bagagem que herdei da vida é singular e valiosa. Apesar de tudo isso, eu que, fora do conteúdo profissional, escrevia leves, críticas e divertidas crônicas, hoje leio poesias e escrevo contos sem tanto humor. 

Dizem que o tempo cura tudo. De quanto tempo preciso para me curar de você?


P.s: Ou te perguntar se ainda é tarde…

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