Ela se chama Laura

By Clara Elisabeth - 21:09

Ela se chama Laura. Teve a criação perfeita. Tinha pais adoráveis, um irmão que a tratava como princesa, era alegra e estava sempre rodeada de amigos. Era uma menina incrível, adorava brincar, era ativa, determinada e muito esperta. Mas tinha um problema: era asmática.


Laura sempre brincava com seus amigos na rua, na época em que as crianças podiam se divertir em paz, mesmo através dos limites do portão de casa, mas tinha que conviver com uma condição: como não podia fazer muitos esforços devido à sua asma, era sempre considerada café-com-leite em brincadeiras que exigiam mais fôlego. Apesar de já ter se acostumado com a situação, ainda não havia aceitado-a. Era um desconforto para aquela menina ter sua capacidade subestimada todos os dias, mas não costumava reclamar, já que era a mais nova do grupo. Mas Laura achava muito mais válido brincar e perder do que ser café-com-leite. Por diversas vezes, Laura até se esforçava para correr no pega-pega, mas frequentemente, ouvia coisas como “nem vou correr atrás de Laura, ela é só uma café-com-leite, mesmo”.

E aos poucos, ela foi perdendo a vontade de brincar. Cansou de se sentir um zero à esquerda. Os amigos a chamavam para brincar na rua, mas ela sempre dizia que estava cansada. Como passou a ficar mais tempo em casa, ganhou mais tempo para si e se entregou aos estudos. Passou a ler cada vez mais os mais diversos tipos de gênero, assistia a filmes e jogava bastante. Devagarzinho, foi aprendendo a dividir o seu tempo entre os estudos e a diversão. Acabou construindo um mundo dentro do seu quarto. Tinha sonhos e planos. Passou a ter uma mente mais aberta e se interessava pelos mais diversos assuntos, o que foi impulsionado pela sua curiosidade.

Gostava de estudar história e linguagens, o que a fez ter um olhar bem desenvolvido quanto às sociedades e a compreender e respeitar as mais diversas culturas. Com os jogos online, se comunicou com pessoas de toda parte do mundo e acabou mantendo os contatos, 
mesmo  fora do jogo já que tinha uma comunicabilidade muito especial. Com seu jeito questionador, sempre descobria coisas novas a respeito das vidas das mais diferentes pessoas que conhecia virtualmente. Desse contato com o conhecimento e com a vida nos diversos pontos do planeta, Laura conseguiu um contato consigo mesma que a surpreendeu: descobriu aspirações e paixões que foram determinantes na construção da sua personalidade.


Após um ano sem brincar na rua, Laura já se sentia diferente. Percebeu em si mesma uma maturidade que só imaginava adquirir em um futuro mais distante. Às vezes, olhava pela janela as outras crianças brincando na rua. Já não sentia saudades como no começo: agora, estava usando seu potencial para fazer coisas que sua asma não poderia impedir. Depois de tanto tempo se encantando com a leitura, passou a escrever, a princípio, sobre sua vida – como forma de desabafo -, mas depois passou a escrever os mais lindos contos e poesias.

Na escola, era aluna de destaque e foi ganhando respeito e espaço na vida escolar. Como falava muito bem, era considerada “a diplomata” da classe e foi a porta-voz de suas turmas durante anos. No ginásio, passou a se envolver com artes cênicas (não, Laura não atuava, mas escreveu inúmeras peças para as apresentações da escola). No ensino médio, conheceu o desenvolvedor de um projeto de artes cênicas, que pagou para que ela escrevesse uma peça, que seria apresentada em um teatro renomado. Com o dinheiro e o sucesso da peça, Laura conseguiu viajar para a Coreia com seus pais. Observando e questionando tudo como de costume, resolveu que deveria escrever sobre a cultura daquele lugar. Anotou em sua agenda, tudo o que observou, todos os aspectos, as cores, entrevistou as pessoas e registrou até os menores detalhes com sua câmera, que a acompanhava como sua sombra.

Ao voltar para o Brasil, encontrou um antigo professor, mostrou seus registros – que logo viraram reportagens – e suas entrevistas. Encantado, seu professor, então, perguntou se ela tinha interesse na área do jornalismo. Laura escrevia sem pretensão e nunca havia pensado sobre o assunto. Ao concluir o ensino médio, prestou vestibular para jornalismo, para ver aonde chegaria. Acabou se apaixonando pela área e, com seu olhar atento e curioso sobre as coisas, escreveu matérias ilustres. Depois de muitos “não” e de muitas portas na cara, conseguiu uma coluna fixa num jornal muito importante. Realizava trabalhos paralelos com fotografia e literatura. Aos 21 anos, chegou a publicar um livro de contos e crônicas. O trabalho obrigou Laura a ganhar uma experiência e uma vivência que foram fundamentais para diversas conquistas, dentre elas, sua independência.

Passou de colunista a redatora-chefe em cinco anos: anos de luta, de muito trabalho e muita perseverança. A essa altura, já morava sozinha e começava a se adaptar à nova vida. Certa manhã, Laura voltava cansada de seu trabalho, quando uma das filhas de seu amigo a perguntou: “como você se sente tendo conquistado tudo isso?”. Foi aí que a ficha de Laura caiu e ela parou pra pensar em tudo o que havia conseguido e em todo o caminho que havia percorrido. Por um instante, sentiu saudades da época em que brincava na rua e tomou um tempo para voltar ao seu antigo bairro. Olhando pela janela das casas, viu que a maioria daqueles que brincavam com ela quando criança continuavam ali, naquela vida simplória. Logo um sorriso esboçou-se no seu rosto. Não por malícia, mas por ter se dado conta do rumo que tomou sua vida e que não havia perdido nada.

Enganou-se quem pensava que Laura estava perdendo alguma coisa, trancando-se no quarto. Por ironia, sua visão tornou-se mais ampla e sua mente mais livre do que aquelas que aparentavam liberdade brincando lá fora. Que liberdade pode ser maior que aquela que o conhecimento nos proporciona, nos soltando das amarras da ignorância? E toda vez que Laura passava naquela rua, ouvia comentários sobre as notícias do dia, vindos do pessoal que se preparava para sair de casa e ir ao trabalho logo cedo, mas que não saíam sem antes ler as reportagens do jornal local, escritas por uma “café-com-leite”. 





Clara Elisabeth


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